UM DEUS DE CARNE E OSSO (?)

Por

Carlos Ribeiro

«... a adoração e o louvor (oferecidos a Ele) têm sempre uma recompensa, e produzem uma grande e abundante vantagem; e naquele momento se até uma flor for oferecida, ela torna-se motivo de recompensa, chamada céu e libertação final».

No Alagaddhûpama-sutra, do Majjhima-nikaya, se dirigindo aos discípulos, Budha diz: "Ó Monges, aceitem uma teoria da alma (atta-vâda) que não engendra nem dor, nem lamentações, nem sofrimentos, nem aflições, nem atribulações para aqueles que a seguem. Mas conheceis, ó monges, uma tal teoria da alma que não engendre nem dor, lamentações, sofrimentos, aflições, atribulações para aqueles que a seguem?"



Quando se está certo de que não existe um deus ao qual imputar nossa própria existência; quando, por conseguinte, não existe nenhum demônio ao qual imputar a origem de nossos sofrimentos; quando, ainda, se está absolutamente certo de que não existe sequer um si mesmo, um mim mesmo, ao qual imputar nossas próprias idiossincrasias e insignificantes realizações, é quando percebemos a verdadeira dimensão representada por alguém cuja existência é tão improvável quanto a de um deus criador, mas que existiu realmente e passou para a história como sendo O Buda, ou O Iluminado.

Quando olhamos para trás, para frente, ou para os lados do ponto em que nos encontramos e contemplamos a insignificância de nossa presença num mundo inabarcável por nossa compreensão; quando, por outro lado, olhamos para a imaginária –conquanto inexorável– linha do tempo em que nos esgueiramos do nada a lugar algum; quando, por fim, nos perguntamos a respeito do porque estamos aqui, quem somos e para onde vamos, é que podemos aquilatar a dimensão supra-humana da miraculosa presença de um deus de carne e osso em meio ao mar de lágrimas em que nos vemos naufragar!

Buda não é somente o maior e mais importante representante da espécie sapiens de todos os tempos cobertos pela história, mas, visto que foi mestre de si mesmo, além de ser único em grandeza e dimensão, foi correta e merecidamente reconhecido como o único ‘mestre de devas e de homens’ por entre éons de absoluta escuridão!

A existência de alguém como o Buda — ainda que inquestionavelmente verdadeira —, é tão improvável quanto à possibilidade de que, depois de colher um punhado de peças as mais díspares em um ferro-velho qualquer e agitá-las no interior de sua cartola, um mágico pudesse tirar dali um relógio de beleza e precisão absolutas, capaz de por mero acaso funcionar de acordo com todos os diapasões cósmicos!

Sua existência é tão insólita como se, depois de realizar os rituais propiciatórios e recitar todos os sortilégios de seu grimório e juntar os ingredientes de suas poções e unguentos, um bruxo criasse por pura sorte uma panaceia capaz de curar todos os males do corpo e da mente de uma vez para sempre!

É como se ainda determinado alquimista fosse capaz de fabricar ouro e pedras preciosas dignas da magnificência de um soberano universal a partir do lixo e esterco retirados a esmo das sarjetas do mundo. Inacreditável ou não, o fato é que alguém assim existiu entre nós; alguém de carne e osso que não foi idealizado por um grupo de místicos e esotéricos em busca de poder temporal e muito menos um mistificador, um abjeto salvador de almas repleto de fórmulas místicas, ameaças apocalípticas e pregações auto-laudatórias!

Esse ser de existência altamente improvável, mesmo tendo seu nascimento ‘anunciado e cercado de acontecimentos insólitos por místicos, sábios e adivinhos’, nasceu de pais inquestionavelmente humanos, ainda que de um rei do Clã Shakya (Sudodhana) e de uma rainha (Maya) falecida uma semana após o parto, motivo pelo qual Sidhata Gotama (nome do futuro Buda) foi criado por Mahaprakjati, irmã de sua mãe e também esposa do rei.

Sabemos que o príncipe Sidhata (‘aquele que realiza todos os desejos’), o Buda histórico, nasceu a aproximadamente dois mil e seiscentos anos, início do período Magadha (546-324 a.C.), em Lumbini , localizada nas planícies próximas à capital dos Shakyas em Kapilavatu, região norte da índia, hoje conhecida como Terai, território pertencente ao Nepal.

Devido à descoberta e decifração de um edital inscrito em um dos famosos pilares erigidos por Asoka (o mais importante e poderoso rei da conturbada história da índia), recentemente Lumbini foi localizada e escavada sendo que, o exato lugar do nascimento do Senhor Buda foi encontrado. Portanto, a existência histórica de Sidhata Gotama, o Buda, é fato comprovado. Provar que esse ser foi o mesmo que ficou conhecido como ‘mestre de homens e de devas’, que perambulou entre o comum dos mortais por mais de quatro décadas ficou muito fácil, visto que Asoka foi o rei mais poderoso da índia a converter-se ao Budismo.

Aliás, não só o rei Asoka, mas existem provas históricas de que o rei indo-grego Menandro I (rei entre 160-135 a.C.) também se converteu ao budismo. Existem moedas deste rei que ostentam a frase "Rei Salvador" (alusiva ao Senhor Buda) e a representação da "roda do dhamma”. Sua conversão a partir de um famoso debate com Nagasena (ver ‘Milinda Panha’ desse autor) foi de tal ordem que os restos mortais de Menandro foram disputados e, por fim, colocados em stupas nas cidades que governou. Até mesmo os sucessores de Menandro adotaram a fórmula "Seguidor do Dhamma" em várias moedas fazendo-se retratar realizando a mudra vitarka.

A origem aristocrática de Siddhattha Gotama fica patente desde o início do movimento budista na índia, visto que pouco tempo depois de sua morte em Rajagriha, sob o patrocínio de Ajatasattu, imperador de Magadha, e presidido pelo monge Mahakassapa, teve lugar o Primeiro Concílio Budista que visava registrar os ensinamentos orais do Buda (suttas) e codificar as regras monásticas (vinaya).

Na ocasião, pediu-se a Ananda, primo e discípulo de Buda, (famoso não só por sua prestimosidade e modéstia, mas, principalmente, por sua prodigiosa memória), que recitasse os discursos do Buda, sendo que a outro discípulo, Upali, coube a recitação das regras da vida monástica. Assim, após terem sido memorizadas – ou quiçá por escribas de Ajatasattu –, a recitação de Upali ficou formalmente estabelecida como o Vinaya Pitaka e a recitação do dhamma por Ananda como o Sutta Pitaka.

Posteriormente, com a inclusão do Abhidhamma (consistindo de sete volumes de comentários sobre as palavras de Buda), pelo fato de ficarem dispostas em três cestos diferentes, tais obras ficaram conhecidas como tipitaka (os três cestos), constituindo-se na base ortodoxa do budismo conhecida como Cânone Pali.

Uma vez que a existência histórica de Siddhattha Gotama como sendo o Buda (um ser de envergadura espiritual no mínimo sobre-humana) é inquestionável e que, como vimos, seus ensinamentos foram zelosamente preservados e postos em prática com inegáveis resultados positivos até os dias atuais, podemos deixar o escarafunchamento histórico-arqueológico desses fatos a cargo dos especialistas e seguir adiante naquele que é o principal propósito desta investigação: a possibilidade exemplificada e ensinada por Buda de que nós, o comum dos mortais, possamos realizar o que ele realizou!

O que, afinal de contas, ele realizou de tão excepcional a ponto de ser não só seguido, mas até adorado como um verdadeiro deus por bilhões de seres humanos (senão pelos devas) ao longo já de dois milênios e meio, sendo que o culto a ele promete estender-se por muito mais tempo? Ao que se sabe, ele nunca afirmou possuir origem sobre-humana e muito me-nos que se tornara imortal, ou coisas desse jaez. Em outras palavras, não dizia ser um deus, nem filho de um deus, nem atribuía origem divina a si, aos devas e muito menos à espécie humana sublimada em sua pessoa. E, embora digam que ele caminhou sobre as águas, ressuscitou pelo menos um pássaro ferido por uma flecha, fez a própria tigela de mendicante subir o Ganges contracorrente, parece que ninguém o viu flutuar, voar, bilocar-se, desmaterializar-se ou atravessar paredes.

Mas o fato é que, pelo menos em um dos seus 5 mil discursos, (e quiçá, dos últimos) que fez ao longo de 45 anos de ininterrupta dedicação ao ensinamento do Dhamma, ele afirmou não só possuir os poderes acima mencionados, como muitos outros mais! Senão vejamos:

Segundo o Mahasihanada Sutta (O Grande Discurso do Rugido do Leão), ao ser informado por Sariputta que o ex-monge chamado Sunakkhatta passara a detratar o Buda dizendo que ele não possuía poderes supra-humanos (uttari manussadhamma), e que a prática do Dhamma, e não ele, é que levava alguém à destruição do sofrimento, o Abençoado disse:

5. "Sariputta, esse tolo Sunakkhatta nunca irá inferir a meu respeito (...): 'Esse Abençoado é um Arahant, perfeitamente iluminado, consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos, desperto, sublime.'

6. "E ele nunca irá inferir a meu respeito (...): 'Aquele Abençoado desfruta dos vários tipos de poderes supra-humanos: tendo sido um, ele se torna vários; tendo sido vários, ele se torna um; ele aparece e desaparece; ele cruza sem nenhum problema uma parede, um cercado, uma montanha ou através do espaço; ele mergulha e sai da terra como se fosse água; ele caminha sobre a água sem afundar como se fosse terra; sentado de pernas cruzadas ele cruza o espaço como se fosse um pássaro; com a sua mão ele toca e acaricia a lua e o sol tão forte e poderoso; ele exerce poderes corporais até mesmo nos distantes mundos de Brahma.'

7. "E ele nunca irá inferir a meu respeito (...): 'Com o elemento do ouvido divino, que é purificado e sobrepuja o humano, aquele Abençoado ouve ambos os tipos de sons, os divinos e os humanos, aqueles que estão distantes bem como próximos.'

8. "E ele nunca irá inferir a meu respeito de acordo com o Dhamma: 'Aquele Abençoado abrange com a sua mente as mentes dos demais seres, de outras pessoas.’ (...)”
Depois de alegar possuir todos os super-poderes acima, o Abençoado passa a enumerar os Dez Poderes que possuía como Tathagata, os Quatro Tipos de Intrepidez, os Oito Assembleias das quais se aproximava e entrava, os Quatro tipos de Geração que conhecia, as Cinco Destinações e Nibbana, a capacidade de Abarcar e Compreender a mente de toda e qualquer pessoa, as Quatro Austeridades Extremas que praticara como Bodisatva, terminando com a seguinte asserção:

63. "Falando corretamente, se fosse para dizer de alguém que: 'Um ser não sujeito à delusão apareceu no mundo para o bem-estar e felicidade de muitos, com compaixão pelo mundo, pelo bem, pelo bem-estar e felicidade de devas e humanos,' é de mim verdadeiramente que, falando o que é certo, isso deveria ser dito."

Embora tenha se negado a responder determinadas questões e se calado sobre inúmeras outras que têm atormentado nossas mentes por milênios e feito correr rios de tinta (e às vezes até de sangue), o fato é que o que ele disse sobre a origem e a cessação do sofrimento jamais foi contestado ou sequer questionado nem mesmo pelo tolo Sunakkhatta. Mas, mesmo possuindo mais poderes supra-humanos do que poderíamos esperar, em sua incomparável compaixão pelo mundo, ele fez questão de afirmar: “Eu ensino uma coisa e uma coisa somente, sofrimento e o fim do sofrimento”.

Não o paraíso depois de uma longa vida composta de falsas expectativas e dolorosas frustrações... Não a felicidade como um falso tesouro no fim do arco-íris... Não a esperança na evolução por meio do sofrimento... Não a chamada ‘bênção do esquecimento’ que perpetua o mergulho dos seres sencientes no ciclo de renascimentos... Não o fátuo prazer da auto-afirmação do ego que, em última instância, não existe... Mas o fim do sofrimento aqui e agora!

Eis o único ensinamento do Buda, sua única promessa. Promessa inquestionavelmente cumprida, visto que, depois de seu próprio despertar, o número de despertados pelos seus ensinamentos jamais deixou de crescer em todas as latitudes e longitudes deste e, quiçá, dos mundos supra-físicos! Graças ao Dhamma ensinado por ele, devas e homens não somente podem deixar de sofrer, mas serem absoluta e completamente felizes, sem nenhuma sombra de medo, arrependimento ou peso de consciência! Plena e verdadeira felicidade sem causa, motivo ou mesmo registro de sua presença.

Como estamos tratando da infalibilidade de um sistema de ensino capaz de libertar a mente de toda ignorância a respeito de si e do mundo, tornando-a absolutamente livre e imune a qualquer espécie de sofrimento, seria de bom alvitre que o analisássemos bem mais a fundo do que costumamos fazer com assuntos ditos espirituais ou religiosos, os quais costumamos julgar como sendo uma ‘questão de fé’.

Aliás, infalibilidade é um dos atributos da inesgotável perfeição da lucidez e sabedoria do Tathagata. Para mim, por lembrarem a ‘onisciência divina’, estas eram sem dúvida as qualidades mais intrigantes do Buda. Afinal ele se lembrava de absolutamente todas as suas vidas passadas ‘nos seus modos e detalhes’, e ‘com o olho divino que é purificado e sobrepuja o humano’, ele via ‘os seres falecendo e renascendo, inferiores e superiores, bonitos e feios, afortunados e desafortunados...’ (ver MN 4 verso 29).

De acordo ainda com o Mahasihanada Sutta, verso 62, sua lucidez e conhecimento do Dhamma eram de tal modo inabaláveis e inesgotáveis que ‘se quatro sábios que fossem perfeitos na atenção plena, memória, narrativa e sabedoria lúcida’ lhe fizessem perguntas sobre o Dhamma durante cem anos consecutivos, sem nunca repetirem uma única pergunta ou pausarem, mesmo assim, suas respostas às questões relativas ao Dhamma não se esgotariam nem provocariam nenhum desgaste em sua sabedoria e lucidez!
‘Sariputta (disse ele, por fim), mesmo que você tenha que me carregar por aí em uma cama, ainda assim não haverá mudança na lucidez da sabedoria do Tathagata.’

Bom, este é um retrato falado do Buda como o vejo e entendo neste momento. Um tanto tosco, reconheço. Mas, por mais que eu venha a acrescentar detalhes a ele pelo resto dos meus dias, isto não alterará em nada a admiração, o respeito e, mais do que isto, a gratidão e o assombro que me assomam quando me dou conta de que, sem o apoio de mais ninguém, ele alcançou o pleno despertar e realizou o seu parinibbana em um corpo de carne e osso exatamente como o meu! E como isto aconteceu há vinte e seis séculos, podemos estar certos de que a nem a ciência, nem a filosofia nem o domínio de qualquer das artes que tanto valorizamos e nos orgulhamos em nossos dias são necessárias à realização desse intento.

Mas, mesmo assim, ciente de que este esforço não pode acrescentar nada de significativo à sua incomparável biografia, penso que os paralelos que possamos traçar entre a visão cosmológica e a psicologia atávica representadas pela prática do Dhamma budista e, por exemplo, a visão científica que permeia a física, a teoria da evolução, a filosofia e a psicanálise modernas podem ser bastante estimulantes e esclarecedores no curso de nossa investigação.

Então, vamos ao primeiro paralelo. Assim como o físico-químico Peter Atkins da Universidade de Oxford, em sua obra The Creation, defende a possibilidade de explicarmos absolutamente tudo, uma vez que, dada a existência das condições físicas mínimas necessárias tudo pode passar a existir. Diz ele:

“Boa parte do universo não requer explicação. Os elefantes, por exemplo. Uma vez que as moléculas tenham aprendido a competir e a criar outras moléculas à sua própria imagem, os elefantes e coisas semelhantes a eles no devido tempo estarão vagando pelos campos.”

Apesar de que para Atkins o paralelo que estamos prestes a fazer com sua tese seja facilmente explicável por ele mesmo, o fato é que a máxima budista denominada Paticasamupada explica com clareza mediana essa mesma possibilidade... Só que com uma precedência de dois milênios e meio! Aqui vai ela: “Existindo isto, aquilo existe. Não existindo isto aquilo também não existe”.

Admitindo que todas as coisas, por mais complexas que sejam, tornam-se possíveis desde que se deem as condições necessárias à sua existência, semelhante aos elefantes da exemplificação de Atkins, a própria existência de Atkins ou mesmo de Buda em nosso meio pode ser explicada de maneira simples e natural, tão logo as moléculas que compõem o universo tenham passado a se reproduzir e competir entre si... Como, aliás, preveem as teorias do ‘Criador Preguiçoso’ e do ‘Relojoeiro Cego’ aventadas tanto pelo papa dos ateístas Richard Dawkins, quanto pelo também ateísta Siddhattha Gotama.

Sim, em linguagem filosófica e científica, o ‘deus pai, criador do céu e da terra’ do credo judaico-cristão não passa de uma falácia! Não há lugar para ele na ordem das coisas que compõem o universo. Não que não seja possível a existência de um sistema hierárquico de seres sucessivamente mais sutis e, portanto, mais depurados, a se adequarem às diferentes dimensões tempo-espaciais do universo. Isto, aliás, não só é admitido pelo próprio Buda, como é uma das bases indispensáveis ao seu ensinamento.

METAFÍSICA BUDISTA

Do que se depreende do que ficou dito até agora, podemos estar certos de que, mesmo sendo não-espiritualista, não-teísta e não-animista, a doutrina budista possui uma visão metafísica do universo. Esclarecendo:

a) mesmo, admitindo a existência fatual de Brahma (Brahma Viharas) e de outras divindades até mesmo superiores a ele, o Budismo não aceita a ideia de um Deus criador... Logo, o Budismo é Não-Teísta e, portanto, Não-Espiritualista.

b) mesmo admitindo o renascimento como sendo o moto-contínuo da existência, o Budismo não admite a existência de um ‘eu eterno’, um ‘eu verdadeiro’, um ‘self’’, ‘alma’ ou ‘substância eterna’... Logo, senão o universo físico, a existência é, em última instância, ‘anatta’. Portanto, nada de animismo, espiritualismo, etc.

Como veremos a seguir, a adoção do Princípio de Renascimento é indissociável da visão cosmogônica e mesmo ‘cosmográfica’ do Universo sendo, portanto, fundamental à compreensão do Dhamma ensinado por Buda. Sem a plena aceitação e adoção da Doutrina do Renascimento pelo próprio Buda, certas afirmações feitas por ele mesmo se constituiriam numa inverdade, o que seria não só contraditório, como totalmente inadmissível em se tratando da pessoa do Tathagata, aquele cujo primeiro de seus dez poderes é compreender ‘como na verdade é, o possível como possível e o impossível como impossível’!

Mas, se não somos uma alma que evolui através de um ciclo interminável de renascimentos, torna-se inadiável entendermos o que renasce? Se não formos capazes de entender a mecânica desse processo, estaremos condenados à eterna escuridão com relação, não somente a este mecanismo de vital importância para o correto entendimento do Dhamma, mas da doutrina budista tomada como, um todo. Afinal, de acordo ainda com o Primeiro Poder de um Tathagata, o Buda afirmou de si mesmo: ‘É possível que um Iluminado, Perfeitamente Iluminado, possa surgir em um mundo - existe essa possibilidade.’

Continuando com o que vínhamos discutindo, a Doutrina do Renascimento é indissociável do corpo doutrinário do Budismo e, por isto mesmo, um fato inúmeras vezes enfatizado pelo próprio Buda. Removê-la seria simplesmente impossível, uma vez que a quase totalidade dos ensinamentos ficaria seriamente comprometida ou perderia completamente o sentido pois, sendo um fato real e não uma simples alegoria (como dão a entender alguns budistas atuais), o renascimento em qualquer dos cinco reinos não só ocorre, mas parece ocorrer imediatamente após a dissolução do corpo. Senão vejamos.

No Giñjakavasatha Sutta - SNLV8 - (A Casa de Tijolos), por exemplo, – Ananda se dirige ao Senhor Buda que naquela ocasião se encontrava em Nitaka, num lugar conhecido como ‘Casa de Tijolos’ e, depois de reverenciá-lo, pergunta: “Venerável senhor, o bhikkhu (monge) chamado Salha morreu. (...) A bhikkhuni (freira, monja) chamada Nanda morreu. (...) O discípulo leigo chamado Sudatta morreu. (...) A discípula leiga chamada Sujata morreu. Qual é o seu destino, qual é o seu futuro percurso?”

“Ananda, o bhikkhu Salha que morreu, com a eliminação das impurezas mentais permaneceu num estado livre de impurezas com a libertação da mente e a libertação através da sabedoria, tendo conhecido e manifestado isso para si mesmo no aqui e agora (realizou o parinibbana). A bhikkhuni Nanda que morreu, com a destruição dos primeiros cinco grilhões, reapareceu espontaneamente em Suddhavasa [Moradas Puras] e lá irá realizar o parinibbana sem nunca mais retornar daquele mundo. O discípulo leigo Sudatta que morreu, com a destruição de três grilhões e com a atenuação da cobiça, raiva e delusão se tornou um que retorna uma vez, retornando uma vez a este mundo para dar um fim ao sofrimento. A discípula leiga Sujata, com a destruição de três grilhões, se tornou uma que entrou na correnteza, não mais destinada aos mundos inferiores, com o destino fixo, ela tem a iluminação como destino.

Portanto, sem mais delongas, podemos deduzir daí que o Buda não só admitia a realidade do Fenômeno da sobrevivência de algo como aquilo que chamamos ser (semente, fruto do Kamma, bhavanga ,) após a morte física, como também dava como certo o renascimento, seja neste ou em outros planos e, em alguns casos, até mesmo a possibilidade de pormos fim ao processo automático de renascimento pela realização do parinibbana.

Esta é uma afirmação e tanto! Nem mesmo os ensinamentos ditos espiritualistas vão tão longe em suas doutrinas consoladoras ou salvacionistas. Afinal de contas, mesmo o processo de renascimento adotado pela filosofia védica que ainda hoje vigora em todo o mundo asiático é tão enfático com relação à possibilidade de nos libertarmos do ciclo de renascimento e morte — que, inevitavelmente, implica na eternização do sofrimento —, por meio de práticas virtuosas!

Aprofundando nossa abordagem, penetremos um pouco mais naquilo que passaremos a chamar de ‘mecânica do renascimento’, visto que ‘o ser’ (bhavanga em páli) o continuum da vida que sobrevive à morte física (e pode ou não renascer, neste ou em outros planos da existência) não é um espírito imortal ou sequer uma alma eterna como muitos de nós temos acreditado.

Essencialmente, se é que assim podemos nos expressar, em termos Budistas, esse bhavanga — o correlativo páli para a ideia ocidental de Ser, é ‘anatta’. Mas, não só o Ser, como também o Universo inteiro é anatta, ou seja: não-eu, aquele ou aquilo que é impessoal, que não tem dono, que é não-substancial; aquilo que, em última instância, é a verdade mais importante a ser realizada para que possamos obter a suprema liberação.

De um modo ainda pouco claro mas inevitável, se admitirmos Anatta como sendo a verdade filosófica fundamental do ensinamento de Buda, somos forçados a admitir que aquilo que conhecemos como o contínuo matéria-energia, ou melhor a relação inevitável entre essas duas condições (e não uma terceira coisa), é ou torna-se de algum modo sensível a si mesmo... e que esta sensibilidade inerente àquilo é a causa do senso de existência, a causa de todo o processo consciencial que culmina na ideia não só de sermos nós mesmos, mas de sermos cada qual ‘um com o universo infinito’ e, por conseguinte, eternos.

Esta é, a priori, minha própria visão cosmogônica do universo! Mas a esta altura deste estudo, não ouso afirmar que ela seja inquestionavelmente sustentável. Contudo, ciente de que uma cosmogonia não é (e pode continuar a não ser para sempre), outra coisa além de uma narração mítica que pretende explicar a origem do universo e da própria humanidade, solicito um pouco mais da atenção do leitor para que possamos prosseguir jornada.

Com relação à natureza de Bhavanga, ou seja, o motivo pelo qual ela surge e se preserva como uma aparente unidade, uma semente de ser ou de existência, foi explicado pelo próprio Buda que em várias ocasiões explicou com clareza meridiana que, devido ao fato de sermos vulneráveis tanto aos prazeres quanto ao inevitável sofrimento existenciais, a raiz da existência prende-se ao fato de nos agarrarmos, egoística e renitentemente, à falsa ideia de uma constante auto regeneração pelo renascimento de modo que, eventualmente, tenhamos a oportunidade de neutralizar o sofrimento através da conquista de um estado de constante prazer e felicidade.

E isto é obviamente impossível, uma vez que agimos de forma, senão mecânica, inconsciente e a partir de uma mente repleta de ‘impurezas’... E, de acordo com o próprio Buda, as ‘impurezas mentais’ desempenham um papel causal na sustentação do ciclo de renascimentos e, a permanecerem a operar nos níveis inconscientes da mente, continuarão a nos arrastar através do caudaloso rio da existência.

É muito difícil falar nestas coisas sem parecermos loucos... Afinal, se aquilo que entendemos por existência tem anatta (não-eu) Anicca (impermanência) e Dukka (sofrimento) como características, então quem somos? A admitirmos essas características como sendo fatores constitutivos de nossa identidade pessoal, é o mesmo se disséssemos: pelo menos por enquanto, sou um nada que se compraz em sofrer!

Mas afinal, quem é ou o que é isso (nós mesmos) que se preocupa com essa história de sofrimento, morte e renascimento? A palavra Páli para essa entidade-processo é Bhavanga, cujo significado lexicológico é o contínuo da vida, fluxo da vida, tornar-se, vir a ser, tendo ainda a conotação de subconsciência, uma vez que o sufixo Bhava significa estados de ser que ocorrem primeiro na mente antes de serem experimentados como mundos internos ou externos.

***Bhava: pron., Existência. Estados de ser que se desenvolvem primeiro na mente e depois podem ser experienciados como mundos internos e/ou como mundos em nível externo. Existem três níveis de existência: no nível sensual, no nível da forma e no nível da não-forma. ...e anga, aspectos, características ou membros de...

No budismo fala-se de um "continuum mental". Não existe morte e reencarnação... existe apenas estados de consciência.

Assim, não há uma alma fixa e imutável que "pula" de um corpo a outro, mas um eterno e impermanente continuum que nasce morre, renasce, remorre... num fluxo de experiências e Karma. Não há exatamente um "ente" que nasceu e morreu e renasceu... mas esse eterno fluxo, que é mutável.

Portanto, para a total erradicação da raiz do sofrimento, torna-se necessária a intervenção de um fator que não acontece nem pode acontecer por acaso que é a ‘pureza mental’. E, ao que parece, a pureza mental é algo que só pode vir a acontecer pela adoção do Dhamma prescrito pelo Abençoado ou, quiçá, pelos métodos prescritos pelos mestres jainistas que eram contemporâneos de Buda.

Em verdade, essa possibilidade libertária só se torna exequível com a adoção sistemática por parte do candidato à libertação de uma atitude absolutamente contrária à corrente natural da existência vista como um todo. Que me perdoem os taoistas, mas em minha modesta opinião a natureza não pode dar o que ela mesma não possui: liberdade, autonomia, independência.

Ao contrário da cega submissão às Leis da Natureza (entendidas, naturalmente, como sendo a vontade de um Deus Criador, prescrita por todas as religiões e sistemas filosóficos, científicos, psicológicos e sociais de todos os tempos conhecidos), a atitude absolutamente libertária de Buda só pode ser vista — e, portanto, entendida —, como uma completa, total e definitiva cisão com todas as tradições e, mesmo com as chamadas 'Leis da Natureza' no que concerne à existência humana!
- Por ser único, Buda (e somente ele) poderia dar testemunho de si mesmo e, ‘para o bem-estar e felicidade de muitos, com compaixão pelo mundo, pelo bem, pelo bem-estar e felicidade de devas e humanos, ... isso deveria ser dito:

‘É possível que um Monarca que faça girar a roda, possa surgir em um mundo - existe essa possibilidade.’ (...) É impossível, não pode acontecer que dois Monarcas que façam girar a roda, possam surgir ao mesmo tempo em um mundo ...

DHAMMA E KAMMA – formando um COSMO

Os ensinamentos de kamma e renascimento possuem um significado ético ainda mais profundo do que o de simples indicadores da responsabilidade moral. Eles nos mostram que não só as nossas vidas são moldadas pelo nosso passado cármico, mas também que vivemos num universo com significância ética. Tomados em conjunto, eles fazem do universo um cosmo, um todo ordenado e integrado, com dimensões de significância que transcendem o mero aspecto físico. Os níveis de ordenamento, aos quais temos acesso por meio da inspeção direta ou da investigação científica, não esgotam todos os níveis de ordenamento cósmico. Há um sistema e um padrão, não só no domínio físico e biológico, mas também no ético, e os ensinamentos de kamma e renascimento revelam exatamente que padrão é esse.

Sob a  forma de volição, a atividade mental constitui o kamma, cujo estoque dirige o fluxo de consciência da vida passada para um novo corpo. Dessa forma o Buda diz: “Bhikkhus, este corpo não lhes pertence, nem pertence aos outros. Vocês devem vê-lo como kamma passado, formado por condições, nascido das volições, a base para as sensações.” (SN XII.37). Não é apenas o corpo, como um composto completo, que é o resultado de kamma passado, mas as faculdades sensuais também (veja o SN XXXV.146).

No Anguttara Nikaya (AN 3:76). O Venerável Ananda se aproxima do Mestre e diz, “’Existência, existência’ diz-se, venerável senhor. De que modo ocorre a existência?” O Buda responde:

“Se não houvesse kamma amadurecendo no reino da esfera sensual, nenhuma existência no reino da esfera sensual seria discernida. Se não houvesse kamma amadurecendo no reino da matéria sutil, nenhuma existência no reino da matéria sutil seria discernida. Se não houvesse kamma amadurecendo no reino imaterial, nenhuma existência no reino imaterial seria discernida. Portanto, Ananda, kamma é o campo, consciência a semente e o desejo a umidade para que os seres obstruídos pela ignorância e aprisionados pelo desejo se estabeleçam num novo reino de existência, quer seja baixo, (esfera sensual), médio, (esfera da matéria sutil), ou elevado, (esfera imaterial).”

SNLV7 - “Quando, chefes de família, o nobre discípulo possui essas sete boas qualidades e esses quatro estados desejáveis, se ele quiser poderá declarar de si mesmo: ‘Eu sou um daqueles que deu fim ao inferno, fim ao reino animal, fim ao reino dos fantasmas, fim aos planos de miséria, fim aos destinos ruins, fim aos mundos inferiores. Eu entrei na correnteza, não mais destinado aos mundos inferiores, com o destino fixo, tenho a iluminação como destino.’”

MEU AQUI-AGORA

Por
Carlos Ribeiro

Para um sexagenário que aguarda 'seu momento' desde os dezessete anos e que, justificadamente, teme que o fim do mundo o alcance antes que atinja sua meta, só existe uma alternativa: concentrar seus esforços no aqui e agora. Portanto, como alguém que só conta com o dia de hoje para dizer o que lhe parece importante, é que me dirijo a você, seja lá quem for!

Que diabos estamos fazendo de nossas pobres existências? Para onde acreditamos estar caminhando? É lógico que sabemos que não estamos construindo nenhuma super utopia, e sim um pavoroso inferno no qual nos entredevoramos em nome de uma banalidade qualquer.
Ninguém está nem aí para nada nem para ninguém. O mundo que se foda! Tudo é tão insípido e destituído de significado, que tanto faz subir, parar no meio do caminho ou descer do trem. Simplesmente desconhecemos qualquer valor que não seja o sexual e o monetário. Simplesmente não existem coisas como amor, compaixão, solidariedade...