UM DEUS DE CARNE E OSSO (?)

Por

Carlos Ribeiro

«... a adoração e o louvor (oferecidos a Ele) têm sempre uma recompensa, e produzem uma grande e abundante vantagem; e naquele momento se até uma flor for oferecida, ela torna-se motivo de recompensa, chamada céu e libertação final».

No Alagaddhûpama-sutra, do Majjhima-nikaya, se dirigindo aos discípulos, Budha diz: "Ó Monges, aceitem uma teoria da alma (atta-vâda) que não engendra nem dor, nem lamentações, nem sofrimentos, nem aflições, nem atribulações para aqueles que a seguem. Mas conheceis, ó monges, uma tal teoria da alma que não engendre nem dor, lamentações, sofrimentos, aflições, atribulações para aqueles que a seguem?"



Quando se está certo de que não existe um deus ao qual imputar nossa própria existência; quando, por conseguinte, não existe nenhum demônio ao qual imputar a origem de nossos sofrimentos; quando, ainda, se está absolutamente certo de que não existe sequer um si mesmo, um mim mesmo, ao qual imputar nossas próprias idiossincrasias e insignificantes realizações, é quando percebemos a verdadeira dimensão representada por alguém cuja existência é tão improvável quanto a de um deus criador, mas que existiu realmente e passou para a história como sendo O Buda, ou O Iluminado.

Quando olhamos para trás, para frente, ou para os lados do ponto em que nos encontramos e contemplamos a insignificância de nossa presença num mundo inabarcável por nossa compreensão; quando, por outro lado, olhamos para a imaginária –conquanto inexorável– linha do tempo em que nos esgueiramos do nada a lugar algum; quando, por fim, nos perguntamos a respeito do porque estamos aqui, quem somos e para onde vamos, é que podemos aquilatar a dimensão supra-humana da miraculosa presença de um deus de carne e osso em meio ao mar de lágrimas em que nos vemos naufragar!

Buda não é somente o maior e mais importante representante da espécie sapiens de todos os tempos cobertos pela história, mas, visto que foi mestre de si mesmo, além de ser único em grandeza e dimensão, foi correta e merecidamente reconhecido como o único ‘mestre de devas e de homens’ por entre éons de absoluta escuridão!

A existência de alguém como o Buda — ainda que inquestionavelmente verdadeira —, é tão improvável quanto à possibilidade de que, depois de colher um punhado de peças as mais díspares em um ferro-velho qualquer e agitá-las no interior de sua cartola, um mágico pudesse tirar dali um relógio de beleza e precisão absolutas, capaz de por mero acaso funcionar de acordo com todos os diapasões cósmicos!

Sua existência é tão insólita como se, depois de realizar os rituais propiciatórios e recitar todos os sortilégios de seu grimório e juntar os ingredientes de suas poções e unguentos, um bruxo criasse por pura sorte uma panaceia capaz de curar todos os males do corpo e da mente de uma vez para sempre!

É como se ainda determinado alquimista fosse capaz de fabricar ouro e pedras preciosas dignas da magnificência de um soberano universal a partir do lixo e esterco retirados a esmo das sarjetas do mundo. Inacreditável ou não, o fato é que alguém assim existiu entre nós; alguém de carne e osso que não foi idealizado por um grupo de místicos e esotéricos em busca de poder temporal e muito menos um mistificador, um abjeto salvador de almas repleto de fórmulas místicas, ameaças apocalípticas e pregações auto-laudatórias!

Esse ser de existência altamente improvável, mesmo tendo seu nascimento ‘anunciado e cercado de acontecimentos insólitos por místicos, sábios e adivinhos’, nasceu de pais inquestionavelmente humanos, ainda que de um rei do Clã Shakya (Sudodhana) e de uma rainha (Maya) falecida uma semana após o parto, motivo pelo qual Sidhata Gotama (nome do futuro Buda) foi criado por Mahaprakjati, irmã de sua mãe e também esposa do rei.

Sabemos que o príncipe Sidhata (‘aquele que realiza todos os desejos’), o Buda histórico, nasceu a aproximadamente dois mil e seiscentos anos, início do período Magadha (546-324 a.C.), em Lumbini , localizada nas planícies próximas à capital dos Shakyas em Kapilavatu, região norte da índia, hoje conhecida como Terai, território pertencente ao Nepal.

Devido à descoberta e decifração de um edital inscrito em um dos famosos pilares erigidos por Asoka (o mais importante e poderoso rei da conturbada história da índia), recentemente Lumbini foi localizada e escavada sendo que, o exato lugar do nascimento do Senhor Buda foi encontrado. Portanto, a existência histórica de Sidhata Gotama, o Buda, é fato comprovado. Provar que esse ser foi o mesmo que ficou conhecido como ‘mestre de homens e de devas’, que perambulou entre o comum dos mortais por mais de quatro décadas ficou muito fácil, visto que Asoka foi o rei mais poderoso da índia a converter-se ao Budismo.

Aliás, não só o rei Asoka, mas existem provas históricas de que o rei indo-grego Menandro I (rei entre 160-135 a.C.) também se converteu ao budismo. Existem moedas deste rei que ostentam a frase "Rei Salvador" (alusiva ao Senhor Buda) e a representação da "roda do dhamma”. Sua conversão a partir de um famoso debate com Nagasena (ver ‘Milinda Panha’ desse autor) foi de tal ordem que os restos mortais de Menandro foram disputados e, por fim, colocados em stupas nas cidades que governou. Até mesmo os sucessores de Menandro adotaram a fórmula "Seguidor do Dhamma" em várias moedas fazendo-se retratar realizando a mudra vitarka.

A origem aristocrática de Siddhattha Gotama fica patente desde o início do movimento budista na índia, visto que pouco tempo depois de sua morte em Rajagriha, sob o patrocínio de Ajatasattu, imperador de Magadha, e presidido pelo monge Mahakassapa, teve lugar o Primeiro Concílio Budista que visava registrar os ensinamentos orais do Buda (suttas) e codificar as regras monásticas (vinaya).

Na ocasião, pediu-se a Ananda, primo e discípulo de Buda, (famoso não só por sua prestimosidade e modéstia, mas, principalmente, por sua prodigiosa memória), que recitasse os discursos do Buda, sendo que a outro discípulo, Upali, coube a recitação das regras da vida monástica. Assim, após terem sido memorizadas – ou quiçá por escribas de Ajatasattu –, a recitação de Upali ficou formalmente estabelecida como o Vinaya Pitaka e a recitação do dhamma por Ananda como o Sutta Pitaka.

Posteriormente, com a inclusão do Abhidhamma (consistindo de sete volumes de comentários sobre as palavras de Buda), pelo fato de ficarem dispostas em três cestos diferentes, tais obras ficaram conhecidas como tipitaka (os três cestos), constituindo-se na base ortodoxa do budismo conhecida como Cânone Pali.

Uma vez que a existência histórica de Siddhattha Gotama como sendo o Buda (um ser de envergadura espiritual no mínimo sobre-humana) é inquestionável e que, como vimos, seus ensinamentos foram zelosamente preservados e postos em prática com inegáveis resultados positivos até os dias atuais, podemos deixar o escarafunchamento histórico-arqueológico desses fatos a cargo dos especialistas e seguir adiante naquele que é o principal propósito desta investigação: a possibilidade exemplificada e ensinada por Buda de que nós, o comum dos mortais, possamos realizar o que ele realizou!

O que, afinal de contas, ele realizou de tão excepcional a ponto de ser não só seguido, mas até adorado como um verdadeiro deus por bilhões de seres humanos (senão pelos devas) ao longo já de dois milênios e meio, sendo que o culto a ele promete estender-se por muito mais tempo? Ao que se sabe, ele nunca afirmou possuir origem sobre-humana e muito me-nos que se tornara imortal, ou coisas desse jaez. Em outras palavras, não dizia ser um deus, nem filho de um deus, nem atribuía origem divina a si, aos devas e muito menos à espécie humana sublimada em sua pessoa. E, embora digam que ele caminhou sobre as águas, ressuscitou pelo menos um pássaro ferido por uma flecha, fez a própria tigela de mendicante subir o Ganges contracorrente, parece que ninguém o viu flutuar, voar, bilocar-se, desmaterializar-se ou atravessar paredes.

Mas o fato é que, pelo menos em um dos seus 5 mil discursos, (e quiçá, dos últimos) que fez ao longo de 45 anos de ininterrupta dedicação ao ensinamento do Dhamma, ele afirmou não só possuir os poderes acima mencionados, como muitos outros mais! Senão vejamos:

Segundo o Mahasihanada Sutta (O Grande Discurso do Rugido do Leão), ao ser informado por Sariputta que o ex-monge chamado Sunakkhatta passara a detratar o Buda dizendo que ele não possuía poderes supra-humanos (uttari manussadhamma), e que a prática do Dhamma, e não ele, é que levava alguém à destruição do sofrimento, o Abençoado disse:

5. "Sariputta, esse tolo Sunakkhatta nunca irá inferir a meu respeito (...): 'Esse Abençoado é um Arahant, perfeitamente iluminado, consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos, desperto, sublime.'

6. "E ele nunca irá inferir a meu respeito (...): 'Aquele Abençoado desfruta dos vários tipos de poderes supra-humanos: tendo sido um, ele se torna vários; tendo sido vários, ele se torna um; ele aparece e desaparece; ele cruza sem nenhum problema uma parede, um cercado, uma montanha ou através do espaço; ele mergulha e sai da terra como se fosse água; ele caminha sobre a água sem afundar como se fosse terra; sentado de pernas cruzadas ele cruza o espaço como se fosse um pássaro; com a sua mão ele toca e acaricia a lua e o sol tão forte e poderoso; ele exerce poderes corporais até mesmo nos distantes mundos de Brahma.'

7. "E ele nunca irá inferir a meu respeito (...): 'Com o elemento do ouvido divino, que é purificado e sobrepuja o humano, aquele Abençoado ouve ambos os tipos de sons, os divinos e os humanos, aqueles que estão distantes bem como próximos.'

8. "E ele nunca irá inferir a meu respeito de acordo com o Dhamma: 'Aquele Abençoado abrange com a sua mente as mentes dos demais seres, de outras pessoas.’ (...)”
Depois de alegar possuir todos os super-poderes acima, o Abençoado passa a enumerar os Dez Poderes que possuía como Tathagata, os Quatro Tipos de Intrepidez, os Oito Assembleias das quais se aproximava e entrava, os Quatro tipos de Geração que conhecia, as Cinco Destinações e Nibbana, a capacidade de Abarcar e Compreender a mente de toda e qualquer pessoa, as Quatro Austeridades Extremas que praticara como Bodisatva, terminando com a seguinte asserção:

63. "Falando corretamente, se fosse para dizer de alguém que: 'Um ser não sujeito à delusão apareceu no mundo para o bem-estar e felicidade de muitos, com compaixão pelo mundo, pelo bem, pelo bem-estar e felicidade de devas e humanos,' é de mim verdadeiramente que, falando o que é certo, isso deveria ser dito."

Embora tenha se negado a responder determinadas questões e se calado sobre inúmeras outras que têm atormentado nossas mentes por milênios e feito correr rios de tinta (e às vezes até de sangue), o fato é que o que ele disse sobre a origem e a cessação do sofrimento jamais foi contestado ou sequer questionado nem mesmo pelo tolo Sunakkhatta. Mas, mesmo possuindo mais poderes supra-humanos do que poderíamos esperar, em sua incomparável compaixão pelo mundo, ele fez questão de afirmar: “Eu ensino uma coisa e uma coisa somente, sofrimento e o fim do sofrimento”.

Não o paraíso depois de uma longa vida composta de falsas expectativas e dolorosas frustrações... Não a felicidade como um falso tesouro no fim do arco-íris... Não a esperança na evolução por meio do sofrimento... Não a chamada ‘bênção do esquecimento’ que perpetua o mergulho dos seres sencientes no ciclo de renascimentos... Não o fátuo prazer da auto-afirmação do ego que, em última instância, não existe... Mas o fim do sofrimento aqui e agora!

Eis o único ensinamento do Buda, sua única promessa. Promessa inquestionavelmente cumprida, visto que, depois de seu próprio despertar, o número de despertados pelos seus ensinamentos jamais deixou de crescer em todas as latitudes e longitudes deste e, quiçá, dos mundos supra-físicos! Graças ao Dhamma ensinado por ele, devas e homens não somente podem deixar de sofrer, mas serem absoluta e completamente felizes, sem nenhuma sombra de medo, arrependimento ou peso de consciência! Plena e verdadeira felicidade sem causa, motivo ou mesmo registro de sua presença.

Como estamos tratando da infalibilidade de um sistema de ensino capaz de libertar a mente de toda ignorância a respeito de si e do mundo, tornando-a absolutamente livre e imune a qualquer espécie de sofrimento, seria de bom alvitre que o analisássemos bem mais a fundo do que costumamos fazer com assuntos ditos espirituais ou religiosos, os quais costumamos julgar como sendo uma ‘questão de fé’.

Aliás, infalibilidade é um dos atributos da inesgotável perfeição da lucidez e sabedoria do Tathagata. Para mim, por lembrarem a ‘onisciência divina’, estas eram sem dúvida as qualidades mais intrigantes do Buda. Afinal ele se lembrava de absolutamente todas as suas vidas passadas ‘nos seus modos e detalhes’, e ‘com o olho divino que é purificado e sobrepuja o humano’, ele via ‘os seres falecendo e renascendo, inferiores e superiores, bonitos e feios, afortunados e desafortunados...’ (ver MN 4 verso 29).

De acordo ainda com o Mahasihanada Sutta, verso 62, sua lucidez e conhecimento do Dhamma eram de tal modo inabaláveis e inesgotáveis que ‘se quatro sábios que fossem perfeitos na atenção plena, memória, narrativa e sabedoria lúcida’ lhe fizessem perguntas sobre o Dhamma durante cem anos consecutivos, sem nunca repetirem uma única pergunta ou pausarem, mesmo assim, suas respostas às questões relativas ao Dhamma não se esgotariam nem provocariam nenhum desgaste em sua sabedoria e lucidez!
‘Sariputta (disse ele, por fim), mesmo que você tenha que me carregar por aí em uma cama, ainda assim não haverá mudança na lucidez da sabedoria do Tathagata.’

Bom, este é um retrato falado do Buda como o vejo e entendo neste momento. Um tanto tosco, reconheço. Mas, por mais que eu venha a acrescentar detalhes a ele pelo resto dos meus dias, isto não alterará em nada a admiração, o respeito e, mais do que isto, a gratidão e o assombro que me assomam quando me dou conta de que, sem o apoio de mais ninguém, ele alcançou o pleno despertar e realizou o seu parinibbana em um corpo de carne e osso exatamente como o meu! E como isto aconteceu há vinte e seis séculos, podemos estar certos de que a nem a ciência, nem a filosofia nem o domínio de qualquer das artes que tanto valorizamos e nos orgulhamos em nossos dias são necessárias à realização desse intento.

Mas, mesmo assim, ciente de que este esforço não pode acrescentar nada de significativo à sua incomparável biografia, penso que os paralelos que possamos traçar entre a visão cosmológica e a psicologia atávica representadas pela prática do Dhamma budista e, por exemplo, a visão científica que permeia a física, a teoria da evolução, a filosofia e a psicanálise modernas podem ser bastante estimulantes e esclarecedores no curso de nossa investigação.

Então, vamos ao primeiro paralelo. Assim como o físico-químico Peter Atkins da Universidade de Oxford, em sua obra The Creation, defende a possibilidade de explicarmos absolutamente tudo, uma vez que, dada a existência das condições físicas mínimas necessárias tudo pode passar a existir. Diz ele:

“Boa parte do universo não requer explicação. Os elefantes, por exemplo. Uma vez que as moléculas tenham aprendido a competir e a criar outras moléculas à sua própria imagem, os elefantes e coisas semelhantes a eles no devido tempo estarão vagando pelos campos.”

Apesar de que para Atkins o paralelo que estamos prestes a fazer com sua tese seja facilmente explicável por ele mesmo, o fato é que a máxima budista denominada Paticasamupada explica com clareza mediana essa mesma possibilidade... Só que com uma precedência de dois milênios e meio! Aqui vai ela: “Existindo isto, aquilo existe. Não existindo isto aquilo também não existe”.

Admitindo que todas as coisas, por mais complexas que sejam, tornam-se possíveis desde que se deem as condições necessárias à sua existência, semelhante aos elefantes da exemplificação de Atkins, a própria existência de Atkins ou mesmo de Buda em nosso meio pode ser explicada de maneira simples e natural, tão logo as moléculas que compõem o universo tenham passado a se reproduzir e competir entre si... Como, aliás, preveem as teorias do ‘Criador Preguiçoso’ e do ‘Relojoeiro Cego’ aventadas tanto pelo papa dos ateístas Richard Dawkins, quanto pelo também ateísta Siddhattha Gotama.

Sim, em linguagem filosófica e científica, o ‘deus pai, criador do céu e da terra’ do credo judaico-cristão não passa de uma falácia! Não há lugar para ele na ordem das coisas que compõem o universo. Não que não seja possível a existência de um sistema hierárquico de seres sucessivamente mais sutis e, portanto, mais depurados, a se adequarem às diferentes dimensões tempo-espaciais do universo. Isto, aliás, não só é admitido pelo próprio Buda, como é uma das bases indispensáveis ao seu ensinamento.

METAFÍSICA BUDISTA

Do que se depreende do que ficou dito até agora, podemos estar certos de que, mesmo sendo não-espiritualista, não-teísta e não-animista, a doutrina budista possui uma visão metafísica do universo. Esclarecendo:

a) mesmo, admitindo a existência fatual de Brahma (Brahma Viharas) e de outras divindades até mesmo superiores a ele, o Budismo não aceita a ideia de um Deus criador... Logo, o Budismo é Não-Teísta e, portanto, Não-Espiritualista.

b) mesmo admitindo o renascimento como sendo o moto-contínuo da existência, o Budismo não admite a existência de um ‘eu eterno’, um ‘eu verdadeiro’, um ‘self’’, ‘alma’ ou ‘substância eterna’... Logo, senão o universo físico, a existência é, em última instância, ‘anatta’. Portanto, nada de animismo, espiritualismo, etc.

Como veremos a seguir, a adoção do Princípio de Renascimento é indissociável da visão cosmogônica e mesmo ‘cosmográfica’ do Universo sendo, portanto, fundamental à compreensão do Dhamma ensinado por Buda. Sem a plena aceitação e adoção da Doutrina do Renascimento pelo próprio Buda, certas afirmações feitas por ele mesmo se constituiriam numa inverdade, o que seria não só contraditório, como totalmente inadmissível em se tratando da pessoa do Tathagata, aquele cujo primeiro de seus dez poderes é compreender ‘como na verdade é, o possível como possível e o impossível como impossível’!

Mas, se não somos uma alma que evolui através de um ciclo interminável de renascimentos, torna-se inadiável entendermos o que renasce? Se não formos capazes de entender a mecânica desse processo, estaremos condenados à eterna escuridão com relação, não somente a este mecanismo de vital importância para o correto entendimento do Dhamma, mas da doutrina budista tomada como, um todo. Afinal, de acordo ainda com o Primeiro Poder de um Tathagata, o Buda afirmou de si mesmo: ‘É possível que um Iluminado, Perfeitamente Iluminado, possa surgir em um mundo - existe essa possibilidade.’

Continuando com o que vínhamos discutindo, a Doutrina do Renascimento é indissociável do corpo doutrinário do Budismo e, por isto mesmo, um fato inúmeras vezes enfatizado pelo próprio Buda. Removê-la seria simplesmente impossível, uma vez que a quase totalidade dos ensinamentos ficaria seriamente comprometida ou perderia completamente o sentido pois, sendo um fato real e não uma simples alegoria (como dão a entender alguns budistas atuais), o renascimento em qualquer dos cinco reinos não só ocorre, mas parece ocorrer imediatamente após a dissolução do corpo. Senão vejamos.

No Giñjakavasatha Sutta - SNLV8 - (A Casa de Tijolos), por exemplo, – Ananda se dirige ao Senhor Buda que naquela ocasião se encontrava em Nitaka, num lugar conhecido como ‘Casa de Tijolos’ e, depois de reverenciá-lo, pergunta: “Venerável senhor, o bhikkhu (monge) chamado Salha morreu. (...) A bhikkhuni (freira, monja) chamada Nanda morreu. (...) O discípulo leigo chamado Sudatta morreu. (...) A discípula leiga chamada Sujata morreu. Qual é o seu destino, qual é o seu futuro percurso?”

“Ananda, o bhikkhu Salha que morreu, com a eliminação das impurezas mentais permaneceu num estado livre de impurezas com a libertação da mente e a libertação através da sabedoria, tendo conhecido e manifestado isso para si mesmo no aqui e agora (realizou o parinibbana). A bhikkhuni Nanda que morreu, com a destruição dos primeiros cinco grilhões, reapareceu espontaneamente em Suddhavasa [Moradas Puras] e lá irá realizar o parinibbana sem nunca mais retornar daquele mundo. O discípulo leigo Sudatta que morreu, com a destruição de três grilhões e com a atenuação da cobiça, raiva e delusão se tornou um que retorna uma vez, retornando uma vez a este mundo para dar um fim ao sofrimento. A discípula leiga Sujata, com a destruição de três grilhões, se tornou uma que entrou na correnteza, não mais destinada aos mundos inferiores, com o destino fixo, ela tem a iluminação como destino.

Portanto, sem mais delongas, podemos deduzir daí que o Buda não só admitia a realidade do Fenômeno da sobrevivência de algo como aquilo que chamamos ser (semente, fruto do Kamma, bhavanga ,) após a morte física, como também dava como certo o renascimento, seja neste ou em outros planos e, em alguns casos, até mesmo a possibilidade de pormos fim ao processo automático de renascimento pela realização do parinibbana.

Esta é uma afirmação e tanto! Nem mesmo os ensinamentos ditos espiritualistas vão tão longe em suas doutrinas consoladoras ou salvacionistas. Afinal de contas, mesmo o processo de renascimento adotado pela filosofia védica que ainda hoje vigora em todo o mundo asiático é tão enfático com relação à possibilidade de nos libertarmos do ciclo de renascimento e morte — que, inevitavelmente, implica na eternização do sofrimento —, por meio de práticas virtuosas!

Aprofundando nossa abordagem, penetremos um pouco mais naquilo que passaremos a chamar de ‘mecânica do renascimento’, visto que ‘o ser’ (bhavanga em páli) o continuum da vida que sobrevive à morte física (e pode ou não renascer, neste ou em outros planos da existência) não é um espírito imortal ou sequer uma alma eterna como muitos de nós temos acreditado.

Essencialmente, se é que assim podemos nos expressar, em termos Budistas, esse bhavanga — o correlativo páli para a ideia ocidental de Ser, é ‘anatta’. Mas, não só o Ser, como também o Universo inteiro é anatta, ou seja: não-eu, aquele ou aquilo que é impessoal, que não tem dono, que é não-substancial; aquilo que, em última instância, é a verdade mais importante a ser realizada para que possamos obter a suprema liberação.

De um modo ainda pouco claro mas inevitável, se admitirmos Anatta como sendo a verdade filosófica fundamental do ensinamento de Buda, somos forçados a admitir que aquilo que conhecemos como o contínuo matéria-energia, ou melhor a relação inevitável entre essas duas condições (e não uma terceira coisa), é ou torna-se de algum modo sensível a si mesmo... e que esta sensibilidade inerente àquilo é a causa do senso de existência, a causa de todo o processo consciencial que culmina na ideia não só de sermos nós mesmos, mas de sermos cada qual ‘um com o universo infinito’ e, por conseguinte, eternos.

Esta é, a priori, minha própria visão cosmogônica do universo! Mas a esta altura deste estudo, não ouso afirmar que ela seja inquestionavelmente sustentável. Contudo, ciente de que uma cosmogonia não é (e pode continuar a não ser para sempre), outra coisa além de uma narração mítica que pretende explicar a origem do universo e da própria humanidade, solicito um pouco mais da atenção do leitor para que possamos prosseguir jornada.

Com relação à natureza de Bhavanga, ou seja, o motivo pelo qual ela surge e se preserva como uma aparente unidade, uma semente de ser ou de existência, foi explicado pelo próprio Buda que em várias ocasiões explicou com clareza meridiana que, devido ao fato de sermos vulneráveis tanto aos prazeres quanto ao inevitável sofrimento existenciais, a raiz da existência prende-se ao fato de nos agarrarmos, egoística e renitentemente, à falsa ideia de uma constante auto regeneração pelo renascimento de modo que, eventualmente, tenhamos a oportunidade de neutralizar o sofrimento através da conquista de um estado de constante prazer e felicidade.

E isto é obviamente impossível, uma vez que agimos de forma, senão mecânica, inconsciente e a partir de uma mente repleta de ‘impurezas’... E, de acordo com o próprio Buda, as ‘impurezas mentais’ desempenham um papel causal na sustentação do ciclo de renascimentos e, a permanecerem a operar nos níveis inconscientes da mente, continuarão a nos arrastar através do caudaloso rio da existência.

É muito difícil falar nestas coisas sem parecermos loucos... Afinal, se aquilo que entendemos por existência tem anatta (não-eu) Anicca (impermanência) e Dukka (sofrimento) como características, então quem somos? A admitirmos essas características como sendo fatores constitutivos de nossa identidade pessoal, é o mesmo se disséssemos: pelo menos por enquanto, sou um nada que se compraz em sofrer!

Mas afinal, quem é ou o que é isso (nós mesmos) que se preocupa com essa história de sofrimento, morte e renascimento? A palavra Páli para essa entidade-processo é Bhavanga, cujo significado lexicológico é o contínuo da vida, fluxo da vida, tornar-se, vir a ser, tendo ainda a conotação de subconsciência, uma vez que o sufixo Bhava significa estados de ser que ocorrem primeiro na mente antes de serem experimentados como mundos internos ou externos.

***Bhava: pron., Existência. Estados de ser que se desenvolvem primeiro na mente e depois podem ser experienciados como mundos internos e/ou como mundos em nível externo. Existem três níveis de existência: no nível sensual, no nível da forma e no nível da não-forma. ...e anga, aspectos, características ou membros de...

No budismo fala-se de um "continuum mental". Não existe morte e reencarnação... existe apenas estados de consciência.

Assim, não há uma alma fixa e imutável que "pula" de um corpo a outro, mas um eterno e impermanente continuum que nasce morre, renasce, remorre... num fluxo de experiências e Karma. Não há exatamente um "ente" que nasceu e morreu e renasceu... mas esse eterno fluxo, que é mutável.

Portanto, para a total erradicação da raiz do sofrimento, torna-se necessária a intervenção de um fator que não acontece nem pode acontecer por acaso que é a ‘pureza mental’. E, ao que parece, a pureza mental é algo que só pode vir a acontecer pela adoção do Dhamma prescrito pelo Abençoado ou, quiçá, pelos métodos prescritos pelos mestres jainistas que eram contemporâneos de Buda.

Em verdade, essa possibilidade libertária só se torna exequível com a adoção sistemática por parte do candidato à libertação de uma atitude absolutamente contrária à corrente natural da existência vista como um todo. Que me perdoem os taoistas, mas em minha modesta opinião a natureza não pode dar o que ela mesma não possui: liberdade, autonomia, independência.

Ao contrário da cega submissão às Leis da Natureza (entendidas, naturalmente, como sendo a vontade de um Deus Criador, prescrita por todas as religiões e sistemas filosóficos, científicos, psicológicos e sociais de todos os tempos conhecidos), a atitude absolutamente libertária de Buda só pode ser vista — e, portanto, entendida —, como uma completa, total e definitiva cisão com todas as tradições e, mesmo com as chamadas 'Leis da Natureza' no que concerne à existência humana!
- Por ser único, Buda (e somente ele) poderia dar testemunho de si mesmo e, ‘para o bem-estar e felicidade de muitos, com compaixão pelo mundo, pelo bem, pelo bem-estar e felicidade de devas e humanos, ... isso deveria ser dito:

‘É possível que um Monarca que faça girar a roda, possa surgir em um mundo - existe essa possibilidade.’ (...) É impossível, não pode acontecer que dois Monarcas que façam girar a roda, possam surgir ao mesmo tempo em um mundo ...

DHAMMA E KAMMA – formando um COSMO

Os ensinamentos de kamma e renascimento possuem um significado ético ainda mais profundo do que o de simples indicadores da responsabilidade moral. Eles nos mostram que não só as nossas vidas são moldadas pelo nosso passado cármico, mas também que vivemos num universo com significância ética. Tomados em conjunto, eles fazem do universo um cosmo, um todo ordenado e integrado, com dimensões de significância que transcendem o mero aspecto físico. Os níveis de ordenamento, aos quais temos acesso por meio da inspeção direta ou da investigação científica, não esgotam todos os níveis de ordenamento cósmico. Há um sistema e um padrão, não só no domínio físico e biológico, mas também no ético, e os ensinamentos de kamma e renascimento revelam exatamente que padrão é esse.

Sob a  forma de volição, a atividade mental constitui o kamma, cujo estoque dirige o fluxo de consciência da vida passada para um novo corpo. Dessa forma o Buda diz: “Bhikkhus, este corpo não lhes pertence, nem pertence aos outros. Vocês devem vê-lo como kamma passado, formado por condições, nascido das volições, a base para as sensações.” (SN XII.37). Não é apenas o corpo, como um composto completo, que é o resultado de kamma passado, mas as faculdades sensuais também (veja o SN XXXV.146).

No Anguttara Nikaya (AN 3:76). O Venerável Ananda se aproxima do Mestre e diz, “’Existência, existência’ diz-se, venerável senhor. De que modo ocorre a existência?” O Buda responde:

“Se não houvesse kamma amadurecendo no reino da esfera sensual, nenhuma existência no reino da esfera sensual seria discernida. Se não houvesse kamma amadurecendo no reino da matéria sutil, nenhuma existência no reino da matéria sutil seria discernida. Se não houvesse kamma amadurecendo no reino imaterial, nenhuma existência no reino imaterial seria discernida. Portanto, Ananda, kamma é o campo, consciência a semente e o desejo a umidade para que os seres obstruídos pela ignorância e aprisionados pelo desejo se estabeleçam num novo reino de existência, quer seja baixo, (esfera sensual), médio, (esfera da matéria sutil), ou elevado, (esfera imaterial).”

SNLV7 - “Quando, chefes de família, o nobre discípulo possui essas sete boas qualidades e esses quatro estados desejáveis, se ele quiser poderá declarar de si mesmo: ‘Eu sou um daqueles que deu fim ao inferno, fim ao reino animal, fim ao reino dos fantasmas, fim aos planos de miséria, fim aos destinos ruins, fim aos mundos inferiores. Eu entrei na correnteza, não mais destinado aos mundos inferiores, com o destino fixo, tenho a iluminação como destino.’”

MEU AQUI-AGORA

Por
Carlos Ribeiro

Para um sexagenário que aguarda 'seu momento' desde os dezessete anos e que, justificadamente, teme que o fim do mundo o alcance antes que atinja sua meta, só existe uma alternativa: concentrar seus esforços no aqui e agora. Portanto, como alguém que só conta com o dia de hoje para dizer o que lhe parece importante, é que me dirijo a você, seja lá quem for!

Que diabos estamos fazendo de nossas pobres existências? Para onde acreditamos estar caminhando? É lógico que sabemos que não estamos construindo nenhuma super utopia, e sim um pavoroso inferno no qual nos entredevoramos em nome de uma banalidade qualquer.
Ninguém está nem aí para nada nem para ninguém. O mundo que se foda! Tudo é tão insípido e destituído de significado, que tanto faz subir, parar no meio do caminho ou descer do trem. Simplesmente desconhecemos qualquer valor que não seja o sexual e o monetário. Simplesmente não existem coisas como amor, compaixão, solidariedade...
Aliás, parece que tais coisas jamais existiram além dos limites históricos e geográficos da vida de alguns seres 'iluminados' que, de tão raros, parece não terem existido de fato! Tá, até parece que eles eram pessoas legais, mas será que, como nós, eram de carne e osso? Não será o caso de eles terem sido inventados (ou reeditados) por alguma instituição dita religiosa para manter-nos à margem dos reais valores da existência, sejam eles quais forem? Somos realmente capazes de fazer algo de bom, senão para o mundo, pelo menos para nós mesmos?

Em verdade, a essa altura dos meus primeiros minutos de 'aqui e agora', começo a duvidar de que a criatura humana seja capaz de qualquer ato de real abnegação ou transcendência, afinal, a fisicalidade e o egoísmo é tudo o que podemos experimentar sobre nós próprios como verdade insofismável! É ou não é?

Então, paremos de mentir pelo menos para nós mesmos para vermos no que dá! Digo parar de mentir para nós mesmos uma vez que, poderíamos arruinar nossos negócios (quando não nossas próprias vidas), se parássemos de mentir em termos absolutos!

Quem... ou melhor, o que somos nós de fato? O que é essa coisa que se esconde por trás da aparência de homo sapiens, que até a presente data parece não ter se saído muito bem com o enigma da esfinge. Notoriamente, somos um animal de frágil compleição, conquanto de inacreditável capacidade de adaptação ao meio! Somos, indubitavelmente, o louro, a coroa da criação... Ou melhor: da evolução. Somos, de longe, o mais astuto, mentiroso, traiçoeiro e cruel de todos os animais.

Ademais, parecemos possuir alguma racionalidade, ainda que isto não nos difira tanto assim de certas espécies superiores. O que talvez mais nos distinga enquanto espécie é a capacidade de expressarmos nossos pensamentos, sensações e sentimentos através de uma linguagem articulada... Coisa que nenhuma outra espécie animal é capaz de fazer de modo consciente, muito embora os papagaios consigam imitar com certa desenvoltura esse dom.

De um modo ainda mais surpreendente, somos uma espécie criativa... Ou melhor, plagiamos os métodos da natureza e chamamos isto de razão. Mas isto não vem ao caso, vez que a natureza não revindica direitos autorais... Muito menos o pretenso Deus que fingimos perceber por detrás dos chamados 'modos do mundo'. Nisso somos muito bons... No entanto, superamos a ambos (Deus e Natura), uma vez que, o que nos distingue uns dos outros é a nossa inacreditável capacidade de mentir! Nisto somos insuperáveis... Ou melhor, únicos!

Como animais da espécie que mente até que temos nos saído razoavelmente bem, vez que conseguimos até lotear o belíssimo planeta do qual fazemos parte e escriturá-lo em nome de quem quer que tenha tido coragem ou oportunidade para exigi-lo! Assim, sem contar a nossa própria que já se encontra em vias de autodestruição, as demais espécies que se cuidem: 'O que é meu, o boi não lambe!'

Mentimos sobre absolutamente tudo... E mesmo quando parecemos não fazê-lo, fingimos compreender e aceitar verdades que só não são maiores do que nossa própria insignificância! Deus sabe o quanto dissimulamos e o diabo o quanto mentimos descaradamente! Em todo caso, danem-se os esses dois megaconceitos, visto que para nós eles nunca existiram de fato!

Mas, voltemos ao nosso tema... Ou melhor dizendo, meu tema. E queiram desculpar-me a falta de modéstia, mas penso que se, munido de toda honestidade de que sou capaz, puder escancarar minhas verdades mais íntimas e expor minhas entranhas mais pútridas à maneira dos bons expressionistas do final do milênio passado, não estarei fazendo mais do que descrever a própria essência do pretenso leitor.

O que estamos fazendo de nossa única oportunidade, visto que a ideia da reencarnação bem pode ser uma de nossas mentiras prediletas a respeito do desejo de imortalizarmos nossas idiossincrasias? Afinal, para onde estamos dirigindo os olhos míopes de nossa pobre inteligência enquanto indivíduos, grupo, nação ou espécie?

Para a completa e total extinção de nosso mundo é a resposta mais óbvia e imediata! Somos como uma colônia de larvas a se deliciarem com a polpa de um fruto (nesse caso o planeta terra) e, como tais, acreditamos instintivamente que, uma vez terminado o delicioso repasto, nos transformaremos em espertas moscas (tecnológicas?) em busca de novas vítimas para a nossa insaciável voracidade!

O mundo está por se transformar em um verdadeiro caldeirão do diabo! Ao que parece, em breve, tudo há de se dissolver em uma espécie de sopa fétida a ser sorvida pelos demônios da inexistência em um recipiente com a sugestiva forma de um cogumelo!

Não se trata de mais um delírio profético, é bom que se diga. Os fatos estão aí para quem quiser ver! O pior de tudo é que não temos a quem culpar. Antes, creditamos desastres similares tais como o dilúvio à fúria divina... E já não dá mais para usar a mesma desculpa esfarrapada! Vamos destruir nossa casa simplesmente porque, de certa forma, acreditamos viver numa espécie de castelo de chocolate o qual não conseguimos parar de lamber e mordiscar! Deus ou o diabo não têm nada a ver com isto!

Culpamos a descomunal voracidade de nossos representantes empresários, capitães de indústria, políticos e religiosos... O fato, porém, é que invejamos seus lugares e posições! Nós somos eles. Eles representam a extensão de nossos ferrões, estejam esses apêndices localizados em nossas caudas ou em nossas fuças! Em última instância, mais do que uma espécie predadora, assassina e autofágica, somos como ratos suicidas.

Nosso modelo de democracia, o espelho diante do qual o mundo deve ajoelhar-se antes e se contemplar com os olhos de um narciso, é a mais descarada forma de nazismo que o mundo teve oportunidade de conhecer! O céu dos cristãos e não-cristãos é uma deslavada caricatura de nosso próprio mundo no qual alguns espertalhões autointitulados 'santos' e 'profetas' conseguiram eliminar todo tipo de oposição às suas estultices. O inferno porém é a única realidade da qual não podemos duvidar, uma vez que vivemos nele!

Sei que como seres biológicos, estamos imunizados contra a ação de quaisquer tipos de predadores. Portanto, sei que ouvir é algo que aprendemos desde cedo a não fazer! Simplesmente não ouvimos. Ou melhor, criamos uma espécie de decodificador interno que atribui o significado desejado ou esperado ao que quer que venhamos a ouvir do lado de fora dos nossos tímpanos. Só ouvimos o que nos interessa, ou seja: aquilo que nos mantém como somos!

Logo, não penso que um simples discurso moral possa demovê-lo, caro leitor, de seu pedestal. Não estou descrevendo você ou o seu mundo, lembre-se. Só posso falar de mim mesmo... E, mesmo assim, posso estar enganado. Aliás, o mais provável é que esteja. Portanto, preste atenção às minhas palavras!

O mundo real não pode ser confundido com qualquer tipo de utopia. Estou certo de que o universo não pode ser reduzido à imagem de uma mega cebola schopenhaueriana cujas sucessivas cascas cada vez mais finas acabam, depois de miríades de éons, por revelar sua essência: as lágrimas que assomam aos olhos de quem a descasca!

Logo, o mundo no qual existimos, existe de fato. Nele, queiramos ou não, temos nossa essência em forma de existência! A aventura de viver, ainda que não consiga transformar-se em uma ventura, é insofismável realidade! Falo objetivamente como alguém que não só sabe que pensa, logo existe, mas como aquele que sabe que existe e, justamente por isto, pensa!

A existência, a vida em si, precede o ato de pensar e, portanto, a formação da consciência e, portanto, do ego. Isto é um fato. Sendo um fato, não pode ser uma mentira! Em assim sendo, a espécie que mente é a mesma capaz de dizer a verdade. E isto me parece ser da máxima importância, visto que, admitindo que (pelo simples fato de ser humano) sou incapaz de dizer a verdade, descubro que passo a ser verdadeiro! É um verdadeiro milagre!

Não que a verdade seja o oposto da mentira, mas sabendo que não sou capaz de dizê-la, torno-me atento e, através do que ela não é ou não pode ser, começo por tatear com os sentidos expectantes a superfície do desconhecido, como o cego o faz ao elefante da fábula. Assim, mesmo não sendo capaz de ver a realidade como um todo, pelo menos sei que ela existe objetivamente. E isto já é um saber! Pequeno, insuficiente... mas é um saber real.

Eis que desvendei o porque do crescente orgulho que se esconde por detrás da venda do chamado método científico! 1Descartes, considerado o mais brilhante de todos os experimentalistas é filho desse insight! Somos seus herdeiros.

Desde seu 'Discurso do Método' ficou estabelecido que o Departamento de Pesos e Medidas (DPM) é a mais importante de todas as instituições humanas, uma vez que não podemos fazer mais do que acreditar em nossos técnicos e, por extensão, em nossos tecnocratas!

'E perguntei ao anjo que estava comigo: “Por que eles pegaram as cordas e se foram”. E ele me respondeu, “Eles foram medir”... Demos, pois, 'a César o que é de César, a Deus o que é de Deus'... e ao pobre do demônio apenas nossas imprestáveis e insossas almazinhas! Seja como for, com a inevitável ascensão da mulher ao poder, no mundo hodierno pelo menos, o DPM só ficará abaixo da TPM! É só esperar para ver!

Mas deixando o campo sagrado das profecias de lado, voltemos ao nosso ponto de partida... Ou seja: eu mesmo. Devo confessar que tenho fortes propensões à religiosidade, loucura que, aliás, parece ser inata em nossa espécie. Desde muito cedo, vi-me às voltas com certos acontecimentos de natureza um tanto insólita que me levaram a pensar seriamente nessa direção. Logo, acautelai-vos pecadores!

Assim como Descartes e 2Augusto Kekulé (dentre tantos outros) tiveram seus sonhos reveladores ou visões premonitórias, eu também os tive... Não importando, naturalmente, a incomensurável distância entre seus cérebros privilegiados e o meu. O fato é que no meu caso específico, por volta dos dezessete anos (numa espécie de abdução ou arrebatamento), como se fora um caroço de azeitona, vi-me como que extraído a força de dentro de meu corpo e levado à presença de três seres de excelsa aparência.

Depois de me explicarem o que estava acontecendo, meus “mestres” me alertaram para o que deveria ser minha missão nesta existência, e reendereçaram-me de volta ao corpo físico! Mais do que um mero sonho, posso garantir ao leitor que foi algo muito mais vívido... Foi realmente impressionante! Tanto que, se ainda se lembra, comecei a presente abordagem com a citação desse maldito 'sonho'!

Pois é, como já o alertei a respeito de minha tendência messiânica, ei-la crua e ridiculamente exposta à impiedade de seu senso crítico, sem adornos, floreios e sem mais explicações... Eu simplesmente acreditei. Duvido que se tivesse acontecido o mesmo com o leitor, tivesse agido de modo diferente! Portanto, apazigue ou, se não puder fazê-lo de imediato, adie sua fúria racional por mais algum tempo, e continue a prestar atenção ao que tenho a dizer.

O fato de haver-me entrevistado com seres hierarquicamente superiores à nossa espécie e, em outra circunstância, ter 'discutido' com o próprio Deus em uma EQM, não chegaram a roubar por inteiro o exercício de minha parca razão e senso crítico! Afinal, continuo no leme de minha pobre e insignificante existência, sem juntar-me aos ratos do porão que, a esta altura, já deveriam ter abandonado o barco!

Esquizoide ou não, adianto que, pelo menos até o presente momento, consegui desempenhar o papel de cidadão e pai de família com relativo sucesso; mesmo tendo experimentado por incontáveis vezes o fenômeno descrito como projeção astral consciente, jamais deixei de ter os pés bem plantados no chão; mesmo me recordando de várias de minhas vidas passadas, continuo a afirmar que a vida humana é uma droga sem solução e sei que, conquanto acredite ser um fato, a reencarnação não deixa de ser uma ilusão; mesmo tendo dialogado frente a frente com um espírito oriental (Dr. Pao Chang) em minha própria residência, e visto os bíblicos irmãos Moisés e Aarão em uma caverna no topo do Monte Sinai, continuo tão incrédulo como sempre fui; mesmo tendo sido visitado em meu atelier por um iogue que nunca vira e que, seguramente, não sabia meu endereço, para selar meus chacras abertos num (providencial) acidente em que despenquei das grimpas de uma mangueira e dar-me um volume do Bhagavad Guita, isto aos dezessete anos, não me transformei em iogue e muito menos segui a tradição védica, ou qualquer outra tradição religiosa...

Mesmo podendo acrescentar muitos fatos tão ou mais insólitos a esta lista, abstenho-me de fazê-lo por dois motivos: ou o leitor perdeu de vez a paciência que eu lhe havia solicitado a alguns parágrafos e fechou as portas de sua atenção na minha cara, ou, certificando-se de que sou irremediavelmente louco, continua a ler com o simples propósito de rir-se às minhas custas. Seja como for, só posso contar com a presumível atenção do leitor descrito na segunda hipótese. Se ele acredita em mim ou não, tanto se me dá.

Disseram-me (os tais mestres): “Prepare-se para a sua missão, mas lembre-se de que não é o médico que procura o doente e sim, este àquele! Tudo a seu tempo.” Ok. Preparei-me. Lá se foram mais de quatro décadas de estudos e práticas os mais diversificados possíveis! Quarenta e poucos anos de absoluta dedicação a um propósito que desconhecia e, pelo menos em detalhes (quase me envergonho em dizê-lo) continuo a desconhecer!

Além de ter-me tornado um leitor voraz de todo e qualquer gênero de literatura; além de ter pintado, composto, cantado, esculpido e, literalmente, ter-me anotado ao longo de toda essa já longa e insípida existência, percorri e ainda percorro o meu caminho... Mas devo confessar que, a partir de determinado trecho, passei a fazê-lo (e ainda o faço) de modo inverso.., Ou seja: de fora para dentro, de cima para baixo e de trás para frente. Tornei-me, por isso mesmo, no avesso do que se devera esperar de mim. Sou um não-mestre, um não-cidadão, um quase não-humano, estando próximo, acredito, de passar a não existir e não ser.

Desenrolo ainda o fuso de minha própria história, desconstruo meu casulo, e deixando de lado as cores e formas libertárias da borboleta que sonhara ser, volto à impotência e quase inércia da larva que era a princípio e da qual me recordo do descomunal esforço para emitir seu primeiro grito primal.

Não sei se me faço entender, mas não quero dizer com isso que me tenha tornado mau, degenerado, ou que tenha renegado minha própria espécie por mero orgulho ou vaidade; que tenha desistido da vida; que seja simplesmente um trânsfuga! Não. Ainda estou aqui... Aqui e agora. Meu coração ainda pulsa...

Ainda há vida aqui. Simplesmente, já não acredito em missão alguma; principalmente quando se está em queda livre ao lado da vítima a ser socorrida! Mesmo assim, não me nego a atender aquele que, por um motivo ou outro, solicite minha ajuda ou atenção. Não deixo vazia a mão que se estende em minha direção; ainda ajudo um cego a atravessar a rua e não furo filas, embora minha idade já me permita fazê-lo.

Vem-me à memória uma frase que um amigo de trinta anos atrás, um crente convicto no poder do 'sangue do senhor', me disse num momento de desespero: 'Que Deus me perdoe, mas já não acredito nele'! É que como ele (meu vizinho Eduardo), a princípio, busquei minha agulha no palheiro... Em seguida, busquei a mim mesmo naquele palheiro... Por fim, um tempo depois esqueci onde se encontrava o próprio palheiro...

O que mais me intriga é que, acreditando no Res Extensa de Descartes, mesmo sem a convicção no Res Cogitans (coisa pensante) o mundo segue de vento em popa, a ciência progride e, em certos aspectos, já se assemelha aos passes de mágica dos antigos contos de fada... Mas conquanto, enrolando-se sobre si mesmo, o espaço continue a se transformar em matéria, o enrolar-se sobre si da razão parece não produzir o espírito! Estaria errado esse tal de 'cogito ergo sum'? Bom, vamos descartar (queiram perdoar o trocadilho, mas foi involuntário) o 'cogito' por enquanto, visto que, no meu entender, o que importa de fato é o silêncio da mente!

Mas tenha em mente que não falo daquela espécie de silêncio dos surdos-mudos e das pessoas que eventualmente se proíbem de falar; falo daquela peculiar forma de silêncio de quando, pela meditação ou atenção plena, as ondas mentais desvanecem-se por completo. Falo daquele silêncio primal no qual as coisas simples e sem voz estão mergulhadas. Quem ainda não teve oportunidade de experimentar um momento de silêncio (e, portanto, fora do tempo) simplesmente não é capaz de imaginar a importância do não cogitar a que me refiro!

Só quem experimenta esse silêncio pode parafrasear o acima descartado, dizendo 'não penso logo não existo: sou'. E sinto confessar ao distinto leitor que, já por algumas inefáveis e inesquecíveis vezes, o autor dessas linhas o experimentou. E essa não é uma afirmação corriqueira e vulgar, mas trata-se, isto sim, de uma questão e tanto!

Mas o que me leva a a pensar que minha história de vida possa ter alguma importãncia para o leitor é o fato de que descobri aparte de qualquer dúvida razoável que há vida após a morte, ou melhor: que só há vida depois da morte... E trata-se de algo tão assustadoramente real que meras palavras não são capazes de expressar seu significado! Portanto, é desse além-todas-as-fronteiras de que trato no aqui e agora em que minha de outro modo insignificante existência se transformou!

1René Descartes (1596-1650) nasceu em La Haye, França, em uma família de prósperos burgueses. Estudou no colégio jesuíta de La Fléche, um dos mais conceituados estabelecimentos de ensino europeu. Foi soldado, sob as ordens de Maurício de Nassau e participou de várias campanhas militares. Sua obras mais importantes são: Regras para a Direção do Espírito (1628), O Discurso do Método (1637) e Meditações Filosóficas (1641).
A dez de novembro de 1616, o jovem Descartes teve um sonho premonitório em que o Espírito da Verdade o visitara e comunicou-lhe que lhe competia a missão de edificar uma "Ciência Admirável" , cujas coordenadas lhe trouxe em outra visita onírica. Houve, ainda, uma terceira, concluindo o esclarecimento devido. (São Marcos, 1993, p. 76)

2 Kekulé fez um discurso em Berlim por ocasião do vigésimo quinto aniversário de seu anuncio da teoria do benzeno, revelando que suas teorias estruturais foram-lhe reveladas através de um sonho. Ei-lo: “Eu estava sentado à mesa a escrever o meu compêndio, mas o trabalho não rendia; os meus pensamentos estavam noutro sítio. Virei a cadeira para a lareira e comecei a dormitar. Outra vez começaram os átomos às cambalhotas em frente dos meus olhos. Desta vez os grupos mais pequenos mantinham-se modestamente à distância. A minha visão mental, aguçada por repetidas visões desta espécie, podia distinguir agora estruturas maiores com variadas conformações; longas filas, por vezes alinhadas e muito juntas; todas torcendo-se e voltando-se em movimentos serpenteantes. Mas olha! O que é aquilo? Uma das serpentes tinha filado a própria cauda e a forma que fazia rodopiava trocistamente diante dos meus olhos. Como se se tivesse produzido um relâmpago, acordei;... passei o resto da noite a verificar as consequências da hipótese. Aprendamos a sonhar, senhores, pois então talvez nos apercebamos da verdade." - Augusto Kekulé, 1865.