A Origem Dependente e a Roda do Renascimento - I

por Carlos Ribeiro

Reconhecer plenamente o princípio do renascimento nos dará a perspectiva panorâmica a partir da qual poderemos avaliar as nossas vidas dentro do seu contexto mais amplo e dentro da rede de inter-relações”. Bhikkhu Bodhi
Como abordar um tema tão controverso como a reencarnação védica ou o renascimento em termos budistas, principalmente quando se está absolutamente certo de que a ideia de alma não passa de uma falácia? Se a alma não existe como contraparte imortal do cérebro humano (como ficará provado ao longo desse estudo), podemos ao menos supor que o Universo a possua? Podemos conceber a existência de um Universo Inteligente ou, se não tanto, pelo menos Senciente? Tal pergunta se faz inevitável e, mais que qualquer outro, o assunto exige uma resposta apoiada em fatos e não em um auto de fé. Trata-se de uma questão e tanto!

Bom, houve um tempo em que pelo menos no mundo ocidental a não-existência de Deus na origem e condução do universo e da vida era simplesmente incogitável. Deus parecia evidente por si mesmo. Era mais fácil para os nossos avós admitirem que o universo físico não passava de uma ilusão do que duvidarem da existência objetiva de Deus. Assim, a existência da alma como representando o elemento consciência soprada em nossas narinas pelo Criador, era aceita como evidente por si mesma.
E, mesmo com o desmoronamento dos argumentos a favor da existência da alma levados a cabo tanto por Buda (anatta) quanto pela Teoria da Evolução concebida por Darwin, quer me parecer que, a levarmos a sério a doutrina da reencarnação ensinada por Krishna (Bhaghavad Gita) e a do renascimento defendida por Buda, a existência de algo similar ao conceito de 'atman' que é fundamental à doutrina do Kamma em ambas tradições, devera continuar a ser evidente por si mesmo.
E isto, a despeito da doutrina budista de anatta que ensina que nem nos fenômenos corporais, mentais ou fora deles, encontra-se qualquer coisa que possa ser chamada de eu, ego, ou outra substância inerente, e da abordagem eminentemente fisicalista da ciência moderna que atribui a origem do universo à explosão de um átomo primordial (Big Bang) e a origem e evolução da vida às forças cegas da natureza por meio de um processo denominado Seleção Natural.
Claro que tanto a ideia de um Deus (pessoal ou não) quanto de uma Alma imortal nos termos platônico aristotélicos, agostinianos e mesmo descarteanos devem ser descartadas como insustentáveis, antes de darmos prosseguimento às nossas investigações sobre a existência ou não do fenômeno do renascimento.
Portanto, seja lá o que for que venhamos a descobrir a respeito daquilo que chamamos de mundo ou de nós mesmos, podemos estar certos de que não será nada de mais aberrante do que o 'nonsense' em que nos vemos obrigados a viver por aceitarmos o doutrinamento de quem quer que seja. Não talvez porque tal ou qual ensinamento seja necessariamente falso, mas pelo simples fato de não nos termos certificado de sua justeza por conta própria.
Assim, com todo o cuidado e acurácia de que formos capazes, abramos a Caixa de Pandora do autoconhecimento em busca da verdade última de nossa própria existência, mesmo que isto não signifique o desvendamento de todos os segredos da vida ou do universo. Afinal, ainda que pouco, a posse de algum saber do qual não possamos duvidar deve ser melhor do que de nenhum, ou mesmo do que a fé cega em alguma verdade de segunda mão.
Se Deus, o espírito, a alma ou aquilo que os chamados mestres espirituais chamam de Verdade existem de fato, nossa crença ou descrença em sua existência é absolutamente inútil e mesmo desnecessária. Se, por outro lado, nada disso se sustenta à luz da razão, a fé, por mais intensa que seja, jamais poderá trazê-los à realidade. Logo, livres do medo de virmos a cometer algum sacrilégio, livremo-nos da tutela de quaisquer autoridades, sejam elas temporais ou espirituais, e prossigamos em nossa busca da verdade passível de revelar-se aos nossos sentidos tomados como um todo.
Nesses termos, vejamos qual das hipóteses acima aventadas – o atman (Eu Imortal), das vetustas tradições religiosas, o anatta (Não-Eu) preceituado pelo budismo, ou o mero acaso do fisicalismo científico que reduz a ideia de substância imaterial a simples processos fisioquímicos – pode servir de viga mestra capaz de sustentar o edifício do conhecimento obtido através do livre exercício da observação e experimentação.
A princípio, e a despeito de parecer-nos reconfortante e consoladora, a ideia de um Deus Criador (ainda que fosse verdadeira) não pode ser comprovada senão indiretamente – 1'Por seus frutos conhecereis a árvore' – ou pelo próprio Deus por meio de uma revelação, do tipo2“Eu sou o Senhor teu Deus...” Mas como podemos comprovar com facilidade, os métodos acima especificados não são muito confiáveis, uma vez que não nos fornecem respostas absolutas e, portanto, livres de contradição.
Senão vejamos: se vista como um fruto, a vida só poderia provir da 'árvore da vida', de onde provém a própria árvore. Se, ad infinitum, recorrermos à semente que decorre do fruto de que a árvore é consequência lógica como sendo a única resposta possível, está instalada a confusão, uma vez que, enquanto princípio causante, nada que seja dado como causa de um dado fenômeno pode ser tomado por causa eficiente de si mesmo.
No segundo caso em questão tal revelação só poderia ser levada a sério se procedesse direta e inquestionavelmente de Deus em pessoa, uma vez que, ao fazê-lo através de um porta-voz qualquer, instala-se uma confusão tão insolúvel quanto a do primeiro caso. Os profetas têm se mostrado tão falíveis e indignos de crédito quanto nós, os simples mortais. Logo, adeus à crença cega nos santos e poetas ditos 'iluminados' e na ardente sarça de todos os profetas!
Assim, vez que a mera ideia de um Deus Criador não se sustenta por si mesma, vejamos se, sem uma base sólida para o cogito proposto por Descartes, pelo menos o seu ergo sum pode ser tomado como uma tábua de salvação à qual possamos nos agarrar em busca de um porto seguro. Como, mesmo não tendo certeza da natureza material ou imaterial de nosso processo consciencial (cogito), somos indubitavelmente capazes de pensar, aferramo-nos à ideia da existência fatual de um pensador.
Em consequência, mesmo estando fragilmente apoiada no simples ato de pensar, Descartes afirma a a própria existência. Digo a própria existência, uma vez que, a saber, somente os seres de nossa espécie produzem pensamentos articulados, e, uma vez que não podemos admitir que Descartes condenasse todas as espécies não pensantes e o próprio mundo à inexistência, parece-me claro que com o enunciado de sua máxima o pai da ciência moderna afirmava não a materialidade pura e simples do mundo, e sim a precedência da razão em relação ao simples ato de existir.
Quando no Discurso do Método Descartes afirma: “vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir'', não ignorava que, se o pensamento fosse uma decorrência da existência e não seu fundamento (como de fato é), ele não poderia atribuir a ele a inabalável natureza da perfeição e, portanto, da absoluta confiabilidade. Visto que, para estar certo de que suas ideias são absolutamente verdadeiras, torna-se imprescindível a existência inquestionável de um Deus Criador, seria do mesmo modo imprescindível que, para ver muito claramente que existo, preciso contar com a certeza apriorística de que minhas ideias são absolutamente verdadeiras.
Baseados em argumentos similares, alguns filósofos ousaram dizer que seus argumentos são ardilosos, tendentes à circularidade e, visto que ele não conseguiu demonstrar satisfatoriamente a existência de Deus, o cogito não é garantia suficiente de se produzir conhecimento à prova de erros.
Eis o paradoxo de Descartes garfado pelo tridente de Hume!
 

1 Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos, os conhecereis. Porventura podem colher-se uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Toda a árvore boa dá bons frutos e toda a árvore má dá maus frutos. A árvore boa não pode dar maus frutos nem a árvore má, dar bons frutos. Toda a árvore que não dá bons frutos é cortada e lançada ao fogo. Pelos frutos, pois, os conhecereis. Evangelho segundo S. Mateus 7,15-20
 
2 Assim diz o Senhor, o teu Redentor, o Santo de Israel: Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te ensina o que é útil e te guia pelo caminho em que deves andar. Isaías 48:17